Parabéns, bruxo: uma carta a Machado de Assis
e a quem ainda acredita no amor, mesmo sendo cético.
Oi, sumidos.
Hoje é aniversário dele, do homem que me ensinou a desconfiar até do narrador, rei do subtexto e, ainda hoje, mais atual do que o último meme viral da internet.
Machado de Assis nasceu em 21 de junho de 1839. E, se você acha que ele está ultrapassado, talvez precise reler seus próprios stories com mais atenção: ninguém entendeu o jogo social, a ironia das relações, a hesitação do amor e o autoengano como ele.
Machado não só fundou a Academia Brasileira de Letras (sentando na cadeira n.º 23, com a pachorra de quem sabia ser o mais lido da sala), como escreveu romances, crônicas, contos e traduziu autores estrangeiros que ele lia em francês, inglês, alemão
Era negro, pobre, gago, órfão de mãe desde cedo. Não tinha sobrenome francês nem “boa aparência editorial”. Tinha talento. O resto ele construiu com uma obstinação silenciosa.
Hoje, no dia do seu nascimento, te convido a celebrar com aquilo que Machado faria melhor do que qualquer trend de TikTok: escrever cartas. Então aqui vai uma, pra ele.
✉️ Minha carta a Machado:
Querido senhor Joaquim Maria,
Feliz aniversário.
Mesmo tendo se mudado desse nosso plano aqui, o senhor segue vivo — e, ironicamente, talvez mais lúcido que muitos vivos com quem eu tenho tido oportunidade de lidar.
Eu li Dom Casmurro com quinze anos e achei que Capitu era culpada. Li de novo com vinte e cinco, e achei que Bentinho era neurótico. Aos trinta, entendi que o culpado era o ponto de vista. Entretanto, sigo achando Bentinho um porre e Capitu, uma deusa.
Parabéns. Dizem que homem não tem “lugar de fala” pra escrever personagem feminino, mas, quer saber? Pro inferno. Com certeza a maioria realmente não tem, mas o senhor arrasa. Suas personagens são complexas, ambíguas e profundamente humanas, figuras centrais que desafiam convenções e espelham críticas e hipocrisias. Eu amo. Amo Capitu, Virgília, Sofia e Flora.
Ninguém escreve como o senhor. Ninguém engana com tanta elegância.
Ninguém diz tanto com tão pouco — ou, pelo menos, com tanta vírgula insinuante.
Hoje, muitos leitores ainda acreditam que suas histórias são simples crônicas da vida burguesa. Tolos. Mas eu sei, Seu Machado, que o senhor escreveu sobre nós. Sobre a dúvida que se instala quando alguém diz “te amo” sem encarar. Sobre a raiva mansa dos casamentos. Sobre o homem que trai ao outro e a si mesmo e chama isso de “obrigação”.
O senhor não tinha redes sociais, mas sabia que o amor sempre foi performático.
Sabia que toda escolha envolve um autoengano. Que o desejo é um truque, e que o ciúme é um vício que se alimenta do vazio.
E, mesmo assim, o senhor seguiu escrevendo sobre o amor. Com desconfiança, é claro — mas com esperança também. Daquelas quietas.
Daquelas que não fazem escândalo, mas insistem.
Obrigada por tudo. E que o senhor me perdoe pela intimidade — é que, lendo o senhor, a gente se sente parte da sua sala.
Mesmo quando a porta está entreaberta só para o leitor atento.
Com afeto e vírgulas bem posicionadas (espero),
Andrea
📖 Trechos para reler (com os olhos de hoje)
Dom Casmurro
“Capitu era dissimulada. Olhos de cigana oblíqua e dissimulada.”
(Spoiler: era o narrador que era.)“A vida é cheia de obrigações que a gente cumpre por mais vontade que tenha de as infringir.”
(Oi, boletos!)
💀 Memórias Póstumas de Brás Cubas
“Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.”
(Filosofia estoica purinha)“Ao vencedor, as batatas.”
(O meme que alimenta gerações.)“Não tive amores, porque amei a mim muito mais.”
(Olha ele! Parece bio de Instagram)
🔮 A Cartomante
“A credulidade é um dom, uma graça, um talento.”
(O puro suco do ceticismo.)O único crime dessa newsletter, além de amar vocês que deixam comentários no fim, é amar demais o senhor Joaquim Maria.
Esse canceriano (como eu) que me sussurra do além: “Confia desconfiando.”
E que nos ensinou que nem todo amor é correspondido —
mas toda boa literatura é.
Se você leu até aqui, comenta um trecho machadiano que te marcou.
Ou me diz: você teria lido a carta da cartomante? —- Leiam esse conto. As obras de Machado de Assis estão quase todas gratuitas no Kindle, exceto as edições especiais, aquelas de colecionador. Também dá pra acessar na internet, grátis, pois ele é de domínio público. Não tem desculpas pra não ler.
Com amor,
Andrea
PS: Terça-feira vocês receberão uma newsletter extra. Meu aniversário com presente pra vocês.
O melhor de todos 🩷