"Vestígios Do Dia". Amor, Subserviência e Repressão.
Sobre se anular, até não ter mais outra escolha.
Estava olhando minha lista de filmes da Netflix, e vi que salvei “Vestígios Do Dia”, estrelado por Anthony Hopkins. Não salvei só porque ele é um dos meus atores favoritos, mas porque os filmes dos anos noventa têm todo o meu coração. Dei o play. Estou até agora arrebatada pela profundidade e beleza daquele filme de 1993, de James Ivory e contendo no elenco, Emma Thompson, Hugh Grant e Christopher Reeve, o Superman da minha época, dos anos 80. Um Christopher Reeve alto, lindo, forte, saudável e levemente grisalho, ainda não tão modificado pela triste doença degenerativa que o consumiu alguns anos depois. Acho que não assisti a esse filme na época, pois com menos de vinte anos eu lembro de ser uma jovem com sede por histórias ágeis e comédias românticas bastante óbvias, e sentia um pouco de tédio com filmes profundos. Tampouco tinha alcance para entender e me sensibilizar com eles.
“Um homem não pode se dar por satisfeito até ter feito tudo para servir ao seu patrão”.
Esta frase, dita pelo mordomo James Stevens (Anthony Hopkins) poderia muito bem resumir tudo que “Vestígios do Dia” retrata em suas mais de duas horas de filme. No entanto, esta obra-prima vai além de uma produção que retrata a vida do proletariado na fria e aristocrática Inglaterra em meados de 1933.
“Vestígios do Dia” é um filme grandioso por essência, com a mais triste história de amor. É sobre relações humanas deixadas em último plano em nome de uma dedicação exacerbada ao dever, ao serviço, ao trabalho. É sobre questões sociais e históricas. É sobre se anular até não ter mais outra escolha.
O filme conta a história do mordomo-chefe de Darlington Hall, Sr. Stevens (Hopkins). O protagonista leva uma vida extremamente dedicada aos deveres da mansão e vive em função de seu patrão, Lorde Darlington (James Fox). Tudo muda quando, certo dia, o aristocrata contrata a governanta Mary Keaton (Emma Thompson). Mesmo com seu jeito polido e muitas vezes frio, Sr. Stevens nutre um sentimento por Miss Keaton, sem se dar conta que é correspondido.
Como pano de fundo, temos uma mansão histórica, palco de decisões e reuniões pré-Segunda Guerra, com fortes discursos em favor ao nazismo. A narrativa, desenvolvida de maneira magistral, leva o espectador a acompanhar também a relação de Sr. Stevens com seu pai, William Stevens (Peter Vaughan), oferecendo logo no primeiro ato, um pouco da personalidade do protagonista e de como eles mantém um elo de servidão aos seus senhores.
Em diversos momentos me senti assistindo “Downton Abbey”, principalmente pela extrema forma protocolar das relações (ou pela falta delas), pela soberania do dever acima da compaixão e também pelas cenas de sinetas tocando na copa da mansão.
“Vestígios do Dia” tem toda sua parte técnica desenvolvida com excelência. O roteiro de Ruth Prawer Jhabvala é magnifico ao conseguir narrar histórias diferentes e organizar as subtramas, mantendo o mordomo sempre ao centro. Quero eu saber escrever assim um dia. Os enquadramentos são meticulosamente executados, assim como as mesas postas e medidas pelo mordomo com régua, assim como a belíssima trilha sonora e fotografia.
Ao acompanhar essa história de amor mudo, sem habilidade alguma de escolha ou de comunicação, eu como espectadora fica sem ar por muitas vezes durante o filme. Emma Thompson (sempre maravilhosa) também merece todos os elogios por sua Sra Keaton, completamente o oposto de seu objeto de afeição. Ela é viva, dedicada, amorosa e apaixonada. Seu olhar, voz mansa e direta dão todo toque de realidade a sua personagem.
“Vestígios do Dia” é um fascinante drama sem a pretensão de ser um clássico; ele se torna grandioso durante a sua projeção de uma maneira natural. Sua narrativa é lenta e pontual, sem nunca ser enfadonha. A obra é uma crítica social ferrenha ao estilo de vida dos ingleses e seu tratamento com seus serviçais. Com personagens excepcionais, complexos, que expõem um conflito entre as classes sociais e sobre as relações, tem um final digno de deixar qualquer coração de gelo aos prantos, fiel à realidade e mesmo com alguns clichês, consegue ser um filme inesquecível, triste e bonito
Se inscrever aqui é rápido, prático e grátis!
Até a próxima newsletter,
Com amor, Andrea